A cultura da multa tributária

Em 16 de agosto deste ano, foi publicada a Solução de Consulta Cosit n° 233, por meio da qual a Receita Federal manifestou seu entendimento de que a denúncia espontânea não é aplicável a contribuintes que se utilizem do instrumento da compensação para quitar tributos em atraso. Desta forma, tais compensações deveriam considerar também a multa de mora de 20%, além do tributo devido.

O tema pode parecer muito específico ou de menor repercussão (a multa é de “apenas” 20%), mas merece atenção porque serve de diagnóstico para uma de nossas várias distorções tributárias: a aplicação excessiva de multas.

O instituto da denúncia espontânea está previsto no artigo 138 do Código Tributário Nacional (CTN) e afasta a aplicação de multa ao contribuinte que, antes de qualquer procedimento administrativo ou medida de fiscalização, pague e confesse débitos já vencidos. Este benefício não afasta, porém, a incidência de juros de mora relativos ao período do atraso.

A ideia da denúncia espontânea é justamente premiar o contribuinte de boa-fé que, por vontade própria, admite o inadimplemento e quita seus tributos – poupando, a administração tributária dos esforços, custos e tempo relacionados às medidas de fiscalização e cobrança.

É verdade que a posição externada pela SRF está em linha com a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça e também com a jurisprudência atual da Câmara Superior de Recursos Fiscais (o órgão tinha entendimento favorável aos contribuintes, mas foi recentemente revertido por voto de qualidade). Em linhas gerais, prevaleceu o argumento de que “pagamento” e “compensação” são institutos diversos e, tendo o artigo 138 se referido apenas ao primeiro, a denúncia espontânea não seria aplicável às compensações.

Embora o CTN realmente empregue tais expressões com significados distintos, a leitura do artigo 138 por essa ótica consiste em interpretação excessivamente literal e formal, que acaba por contrariar um valor maior prestigiado pelo Código: o princípio da boa-fé. O resultado disso acaba sendo um reforço da cultura de contencioso fiscal, que é muito ruim e precisa ser reduzida.

Além disso, da forma como regulada atualmente pela Lei nº 9.430/96, a compensação tributária ganhou grande agilidade e simplificação (a entrega é feita on-line), o que em muito a aproxima, em termos práticos e financeiros, de um pagamento em dinheiro. Aliás, a compensação nada mais é do que um pagamento; não em dinheiro, mas em créditos oponíveis ao Fisco. Por estas razões, o uso da compensação se tornou muito frequente no dia a dia das empresas, especialmente no âmbito dos tributos federais. Sua principal vantagem é a preservação do fluxo de caixa.

Sob o aspecto econômico, então, a Solução de Consulta tem como efeito negativo o encarecimento da compensação enquanto instrumento à disposição dos contribuintes. Por consequência, estimula-se o pagamento de tributos com os recursos em caixa e o acúmulo de créditos fiscais no ativo das empresas. Isso tira recursos que poderiam ser aplicados nas atividades empresariais e restringe investimentos, o que é naturalmente prejudicial à economia como um todo e chega até mesmo a afetar a competitividade internacional de nossas empresas.

Há ainda outros dois sinais que evidenciam a cultura punitiva, ainda no âmbito das compensações. Por incrível que pareça, quando a compensação não é aceita pelo Fisco, a SRF cobra do contribuinte a multa de mora mesmo nos casos em que a compensação foi feita antes do prazo de vencimento do tributo. Ou seja, pune-se até mesmo o contribuinte que estava em dia!

O segundo exemplo é a aplicação adicional de multa isolada de 50% em toda e qualquer compensação que não é aceita pelo Fisco. Ou seja, considerando-se as duas multas (de mora e isolada), chega-se a uma penalidade total de 70% do valor do tributo compensado. Esta multa isolada foi criada apenas em 2009 e vem sendo afastada pelo Poder Judiciário. É inclusive alvo de uma ação direta de inconstitucionalidade do STF, que já conta com parecer do Ministério Público Federal favorável às empresas.

As infrações devem ser repreendidas, mas a penalização excessiva apenas acirra a relação já polarizada entre Fisco e contribuinte

É evidente que infrações devem ser repreendidas, mas a penalização excessiva, inclusive daqueles que agem de boa-fé, apenas acirra a relação já polarizada entre Fisco e contribuinte. Melhor seria prestigiar o princípio da boa-fé e evitar a imposição desproporcional de penalidades. Isto contribuiria para a construção de uma relação tributária mais justa e saudável.

O Brasil precisa de uma reforma tributária, mas também (e talvez até mais) de uma melhoria da cultura tributária. Isso não virá automaticamente. Precisa ser construído. A penalização do contribuinte de boa-fé é um exemplo do que pode e precisa mudar.

Fonte: Valor Econômico – Opinião Jurídica – Por Daniel Bellan e Bruno F. Nogueira dos Santos